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terça-feira, 27 de abril de 2010

Março - Viagem ao Texas


João
De novo na classe econômica. Quando será que eu vou aprender? A falta de espaço não deu chance para o sono, uma noite perdida significa um dia perdido, além do mau humor por mais 24h. Tinha a economia de dinheiro, claro, mas também um pouco de medo de exibir-se, parecer um esnobe, viajando de executiva. Coisa de quem teve infância pobre. Além do que, parecia também coisa de velho: dificuldade para dormir, um corpo cansado pela viagem, a falta de tônus, de flexibilidade. Acostumar-se com a velhice era muito mais difícil do que acostumar-se com a riqueza.
Esse congresso fora como os últimos todos. Um monte de falatório, assuntos repetidos em ladainha, horas de atenção para uma pequena faísca de brilho ou novidade. É assim com tudo na vida, sempre muito trabalho e prêmios escassos.
Os Estados Unidos são sempre fascinantes. Esse intrincado de rodovias, viadutos, de pistas que sobem e descem, a abundância de sinalização sempre me impressionam. Talvez mais impressionante ainda que haja engarrafamentos. Já as calçadas e as lojas, ao contrário das estradas, estavam aflitivamente vazias. Lembro-me de viajar para o Peru, para a Argentina, a Espanha em épocas de recessão, notei o mesmo fenômeno, calçadas vazias e inúmeros anúncios de aluguel. Ao contrário dos outros lugares não havia camelôs em Fort Worth.
Fiquei com uma questão me martelando, o excesso de infra-estrutura. Excesso da casas, de lojas, de escritórios, de vias, de meios de transporte. Quando será que eles perderão a escala? Será que já perderam? O deficit público estatal financiando empresas que já não se sustentam mais pelas leis da oferta e da procura. Essa aparente calma não é um lento agonizar americano? Um bonito por do sol que não deixa entrever a escuridão da noite que chega? E depois? Depois de saciadas todas as necessidades, até onde nos levam as vontades?
Do ponto de vista artístico não há dúvida, a arte floresce com a riqueza. Os patronos, os governos, as corporações, é preciso grana sobrando para realizar-se arte em grande escala. Como precisa a arqueitetura. Só depois de superadas as necessidades, guiadas pelas vontades, pelas aspirações de eternidade é que se faz uma bela arquitetura. É o que resta dos egípicios, dos persas, dos romanos, mas a solidez do concreto não sustenta a sociedade. Como Artaxerxes, o grande rei arquiteto que entrega a Alexandre o império conquistado por Dário. Dário e Alexande , ambos cognominados...Será que essa palavra existe? Estava viciado no google do seu celular, durante o vôo não podia consultá-lo. Vamos refrasear... droga, será que essa palavra existe? Em inglês eu tenho certeza rephrase , mas será que é assim que se escrev? Vamos lá outra vez, ambos chamados de “O Grande”. Dário O Grande, Alexandre O Grande. Já Artaxerxes é apenas uma página no livro de história da arquitetura. Talvez a arte aconteça quando a violência é superada. Hannah Arendt escreveu isso, a violência é uma necessidade do estado - do poder - embrionário.
Seriam antagônicos, arte e violência? A violência uma força geradora de realidades. A arte substituindo a realidade pelos conceitos. Uma forma opulenta de decadência?
Oito horas de viagem. Os olhos estão fechados, o sono não vem. Ana tem razão, talvez ele seja incapaz de um pensamento prático. Só baboseiras que nem para trazer o sono servem.
Oito horas faltam quatro, sessenta e seis por cento do tempo decorrido. Duzentos e quarenta minutos. Quanto dá duzentos e quarenta vezes sessenta? Poucas horas para poder ter um pouco de sono repousante. Duzentos e quarenta vezes dez, dois mil e quatrocentos, vezes quatro, nove mil e seiscentos, mais a metade , quatorze mil e quatrocentos segundos, não, minutos. Menos duas horas de fuso horário. As contas também não estavam ajudando a trazer o sono. Quando nadava contava as voltas na piscina, as braçadas nos cinquenta metros, as respirações na ida e volta, os ladrilhos da piscina. A mente para um lado o corpo para o outro.
Me dei conta que a Ana é a voz da minha interlocutora nos diálogos internos, ou talvez esteja pensando como quem escreve uma carta:
“Querida Ana,
Vivi uma situação curiosa. Assisti a chegada de uma picape dos anos setenta ao estacionamento do Museu de Arte Moderna de Fort Worth – é pequeno mas tem um acervo caprichado.
Saem de dentro da picape enferrujado um típico cow-boy texano acompanhado da sua mulher.
Meus preconceitos não o encaixavam no cenário do museu, talvez na frente da TV tomando cerveja enquanto a mulher cuida da casa, talvez nos afazeres da fazenda de gado ou consertando, com sucesso apenas temporário, a velha caminhonete.
Lá dentro o vejo apreciando os quadros com uma lente de aumento, enquanto a mulher consulta um grosso livro sobre arte moderna.
Não eram cow-boys, eram coinesseurs... Ao contrário de mim, um diletante profissional!”
Não, era mais que isso. Ana era sua companheira mesmo quando estava ausente, sua presença não era mais apenas física, ela também morava dentro dele.

Ana
Que porra de e-mail é esse? Será que esse filho da puta nunca escreveu pruma namorada. Nenhuma menção a falta que ela faz, nenhuma declaração de amor, uma lembrança que seja. Ele é tão metido a erudito, podia citar a Cássia: " Eu caso contente; Papel passado e presente; Desembrulhado o vestido; Eu volto logo, me espera; Não brigue nunca comigo; Eu quero ver nossos filhos..." Qualquer merda, menos um textinho tão impessoal.
Ele tá pensando que o fodão do Indiana Jones? O mega fodão do Leví-Strauss? Dá uma voltinha no quarteirão e fica peidando sociologias?
Só porque encarava delegado olho no olho, porque arrebentava na profissão, porque falava mais palavrão que qualquer estivador, esqueciam que ela era mulher. Isso: MULHER. Caralho, não é óbvio, basta olhar para mim, porra. Aliás esse sempre foi um problema, os peitos, a bunda, a buceta chegavam sempre antes dela mesma nos lugares. Homens ou mulheres, julgavam-na pela aparência. Tinha sempre que provar que era mais do que bonita ou gostosa. Sétima filha, depois de seis irmãos homens, estava acostumada a brigar!
Sete, oito, nove, dez... já tá passando a raiva.
O João é assim mesmo. Vive nesse mundinho da cabeça dele. Eu até o admiro por isso, preciso admitir, caralho. Tem essa coisa de estar mais ligado aos princípios, a essência das coisas do que à merda da realidade. É um pouco de ilusão mas é também caráter. É surpreendente como ele conseguiu se destacar profissionalmente sendo assim tão avoado. É estrela e essa coisa de artista que arquiteto tem.
Vou responder o e-mail:
"João caríssimo, vc acabou de perder a companheira de praia. Hoje sai da dermatologista irritada com as primeiras marcas do tempo. Despigmentação pela ação do sol. Você ainda quer sair pra dançar?"




Maria
- Pronto minha filha, a malinha da D. Euzébia cabeu tudinho, até com um pouquinho de folga. As carlotinhas vão te sustentar bem na viagem.
- Então menina, separou os documentos?Atenção, não fala com nenhum estranho, não aceita nada de ninguém.
- Maria lembra que você é filha de Neuza e de Bastião. Você é pobre mas é moça honesta. Presta bastante atenção para você aprender tudo e logo poder ser de valia para a casa.
- Obrigado minha santa, obrigado meu Pai, obrigada meu santinho, fiquem sempre pertinho de mim que sem vocês eu não consigo. É tanta coisa junta que eu tô sentindo eu nem sei mais de nada. Dá um medão danado sair aqui de Baú, de pertinho da mãe e do pai e ir pro Rio de Janeiro. Se ainda fosse pra Cardoso morar com as meninas, ajudar com as crianças, não assustava tanto. Ah o Rio de Janeiro.... Deve ter tanta coisa linda! Quando pedi a bença pra madrinha ela me mostrou um cartão postal do Cristo Redentor, prometi rezar um terço lá um dia.
- Minha filha, vamos rezar antes que o sono chegue.

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