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terça-feira, 27 de abril de 2010

Julho

Ana

- Oi, amiga. Tá tudo bem? Eu também, Nanda. A gente precisa marcar sim, tanta coisa pra falar.
É mesmo? Ah, você só pode estar exagerando, amiga, você tá ótima, nem vem.
Exagero seu, esse lance de fazer dietas malucas é loucura pura, Fernanda.
Você precisa relaxar, meditar, deixar a força você tem se manifeste.
Tudo é energia. Pensa positivo.
Olha, Mercúrio e Saturno estão em conjunção, a Lua hoje transita em Touro. Momento perfeito pra se conectar com o Bem Maior.
Tá, eu aviso. Deixa te perguntar uma coisa... Você conseguiu o telefone da decoradora?
Tá, esquece não, heim!?
Beijo.
Mais um minuto e perguntaria se ela não quer se fuder. Mulher insegura é foda.
Bateria no fim já.
- Oi, João.
- Cinema? Tá, pode ser. Que horas? Tá. Beijo.
Porra, sempre a mesma coisa... circuito alternativo... mania de querer exalar ares de pseudo-intelectual, mania besta. Engraçado como as coisas mudam...
Nos conhecemos em Paris, comemos ostras frescas, percebemos que tínhamos várias coisas em comum. Ambição por dinheiro, gosto refinado por vinho, senso de humor.
Agora, muito fora de hora, ele quer manter um ar blasé... Acha que nessa altura do campeonato deu pra fingir que é comunista, pensa que é charme. Vai se fuder... Só falta me convidar pra ir pra Cuba.
Não conversa mais comigo, fica lendo, lendo.
Gosta de Van Gogh, mas prefere Dali. Diz que Gandhi é o Jesus moderno. A metafísica de Platão é legal. Descartes é foda! Kant é muito bom, Nietzshe era melhor antes de ficar doido, Sócrates é um chato. Adorno é ótimo, mas crítico demais. Rosseau é bom. Meu preferido... Heidegger e Durkheim. Marx. Kafka é meio chato, mas Cervantes é ótimo.
Só isso. Esse é o assunto. Ainda critica o futebol.
Mentira ninguém conhece isso tudo.
E deu agora pra sair todo dia, reunião e mais reunião. Tá estranho. Não é coisa da minha cabeça.
Me convida pro cinema e acha que tá me fazendo feliz.
Não tem mais aquele tesão por mim, eu sei. Vivia querendo transar e agora vive cansado.
Unhas feitas, cabelo escovado, depilação ok. Pra quê?
Pra ir ao cinema ver filminho Cult e depois ouvir alguma coisa sobre filosofia ou sobre como está caro o papel vegetal.


Maria

- Cada coisa bonita. Olha a quantidade de sapato! Tanta roupa...
Esse vestido aqui. Lindo.
E deu em mim certinho, gostei.
- Valei-me, meu Jesus Cristo. Tira isso, Maria. Isso não está certo, não é seu. Se dona Ana te pega vestindo as coisas dela você já viu, né?
- Ih, madrinha, quê que tem?
- Vá fazer suas obrigações.
- Bem que queria tomar banho de banheira, vestir essas roupa bonita, jantá fora. Queria era conseguir marido rico igual ao doutô. Rico e bonito. Parece artista até! E sabe que ele me olha, né?
- Tá vendo novela demais, isso sim.
- Tô falando! Essa menina tá saidinha demais. Tá virando a cabeça. Mas não posso falar que você me manda ficar calado, como se eu não soubesse de nada. Veja se é coisa de menina direita. Agora anda reparando no olhar dos homens.
- Meu filho, reparar todo mundo repara. O que não tá certo é isso de ela querer ser outra pessoa, ter o que não tem. A gente tem que se conformar com o que Deus nos deu.
- Cobiça é pecado, inveja também, ela precisa ir à missa, se confessar, ouvir sermão do padre. A gente tá dando conta não.
- A gente tem que se conformar com o que Deus nos deu, minha filha.
- Contentar com pobreza? A gente vê as coisa bonita e não pode ter, trabalha dia e noite pra fazer os outro feliz. Isso é vida, não. Vê a vida da mãe... cheia de ruga, trabalhando noite e dia... nunca foi feliz, nunca passeou, nunca nada. Quero isso pra mim não.
- Quê isso, filha? Deus sempre foi muito bom pra você, pra sua família, todo mundo com saúde. Suas irmãs casadas...
- Casadas com pobre. Grande coisa.
- Minha filha, Num estou reconhecendo a Maria que eu conheço. Deus nunca dá uma cruz maior que a gente não possa carregar!

João



Não sei porque retornei, há alguns dias, àquele restaurante. Do Metrô da Cinelândia pela rua Santa Luzia, daí a Presidente Antônio Carlos e defronte o Maison de France, sobre uma farmácia, o mesmo salão simples. Restaurante macrobiótico. Gostei de ver que permanecia aberto, tinha o mesmo aspecto após quase 20 anos. Não sei se nunca pintaram as paredes ou se o fizeram logo depois da minha última visita. O tom verde-claro-encardido era o mesmo da minha lembrança. Caldo de missô e nabo ralado. Não havia outras opções. Ele mantinha sua tradição purista.


A saudade mesmo era outra. No mesmo andar, na porta em frente, funcionava um instituto de estudos metafísicos, “Era de Aquário” ou “Flor do Amanhã”. Porque será que nunca me lembro dos nomes? Lembro bem das palestras sobre alquimia, astrologia (zodiacal e chinesa), telepatia e outros temas.


A coordenadora e principal palestrante era uma das mulheres mais interessanes que conheci. Quarenta anos, um pouco mais, ou pouco menos. Eu não devia ter nem vinte. Apesar da diferença de idade lembro-me do fascínio que ela me causava. Não possuía dotes físicos excepcionais, de estatura mediana não era muito magra ou gorda, o cabelo preto levemente ondulado permanecia preso numa trança ou rabo de cavalo , às vezes lembro-me de uma franja. Seus olhos são minha lembrança mais freqüente, marrons, muito escuros, suas íris pareciam-me feitas de veludo molhado. Talvez ela me hipnotizasse.


Embora me sentisse muito atraído, nunca me declarei. Acreditava na época que dentre seus alunos ela me dedicava uma atenção especial, o que me fazia girar aprisionado na sua órbita gravitacional. Conheci depois mulheres com esta habilidade, fazem-no crer que é especial ou desejado, mas nunca se entregam ou permitem a aproximação. Não parecem desejar um fim específico como namorar, obter vantagens profissionais, casar ou outra coisa qualquer, apenas gostam de ser adoradas.


Lembro de uma tarde especial. Havíamos participado de uma discussão sobre os arcanos maiores do Tarot, éramos poucos, como de costume e foram saindo até sobrarmos apenas ela e eu. Eu já tinha desistido de resistir ha muito tempo e me entregava aos seus encantos sem esperar nada em troca. Perguntei se ela podia prever o futuro.


Contou-me de Prometeu, semideus grego que enganara Zeus e roubara do Olimpo o fogo (nous) para dá-lo aos homens. O castigo de Prometeu fora ser acorrentado ao monte Cáucaso e ter seu fígado devorado eternamente. Prometeu significa, em grego, aquele que vê antes. Seu irmão chamava-se Epimeteu, o que vê depois.


Zeus, insatisfeito apenas com o castigo de Prometeu, planeja a vingança contra os homens. Chama Juno e pede que prepare uma donzela muito especial. Cada deus do Olimpo lhe ofertará seu melhor atributo, recebe beleza e inteligência, a habilidade de tecer e cantar. À esta moça tão prendada dão o nome de Pandora (que possui todos os dons). Pandora é presenteada à Epimeteu, ela trás consigo uma caixa e a recomendação de Zeus de que nunca deverá ser aberta.


O tempo passa e Epimeteu desfruta das delícias de Pandora, é inevitável que um dia sua atenção se volte para o dote de sua noiva. Tendo vindo de Zeus e pelas mãos de Pandora imagina as maravilhas ali escondidas. Abre-a. O dia claro vira noite, tantos são os males que saem da caixa, a dor, a doença, a miséria. Epimeteu sofre dores violentas pela proximidade de um mal tão grande, num máximo esforço consegue fechar a caixa. Todas as desgraças, vingança de Zeus, já estão soltas no mundo, uma só permanece trancada: a possibilidade de ver o amanhã.


Escutava embevecido e ela prosseguiu -"Graças ao esforço de Epimeteu nem eu nem você saberemos antecipadamente o dia de nossa morte". Não sei se me lembro ou inventei este final, como também não lembro de como comecei a beijá-la. Lembro-me perfeitamente da alegria que senti ao percebe-la úmida.


Os mitos de Prometeu e Pandora falam da separação do homem da natureza, quando deixamos o mundo natural para mergulharmos no mundo da cultura. A palavra grega para fogo é a mesma para conhecimento, o nous de Prometeu se assemelha ao fruto proibido do centro do Jardim do Éden. A serpente contou a verdade, se comêssemos de ambas as frutas, a fruta do conhecimento e da vida eterna nos tornaríamos deuses. Fomos expulsos do paraíso e a serpente condenada a rastejar. Pagamos um alto preço por esse discernimento que usamos tão pouco.


A porta ao lado do restaurante é hoje uma oficina protética. Afastei-me gradualmente daquela que me enfeitiçava. Encontrei alguém que cuidava mais do meu corpo e menos do espírito, algo importantíssimo aos 20 anos. As visitas foram se tornando infreqüentes até se acabarem. Na faculdade ou logo depois tornei-me um cético. Guardo um pouco de seu feitiço e agradeço o quanto me despertou a curiosidade. Hoje descendo a rua de volta à Cinelândia agradeci a ela e a Epimeteu, posso caminhar sem saber o que me acontecerá amanhã.

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