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terça-feira, 27 de abril de 2010

maio

João
Essa época do ano sempre foi a minha predileta. O céu do Rio de Janeiro ganha um tom único de azul, e ao contrário de outras estações, o outono quase não tem nuvens. Uma vez fizeram uma pesquisa e nosso céu foi considerado o mais azul do planeta. Deve ter sido em maio. Lembro que ia para a escola de casaco, gostava especialmente de uma casaco de algodão com as mangas e gola em malha canelada, fechado com um zíper que se desencaixava em baixo. O suficiente para o frio das seis horas da manhã quando pegava o ônibus para a escola, pela hora do recreio já não era mais necessário. 
Os ônibus naquela época usavam fichas coloridas para identificar as passagens. Do ponto final à metade do trajeto uma ficha azul, da metade ao fim uma ficha amarela, uma ficha vermelha dava direito ao percurso inteiro. as vezes um fiscal passava de cadeira em cadeira verificando as fichas e trajetos. A ficha deveria ser colocada numa espécie de garrafa cofre ao lado da porta do motorista. era uma maneira do motorista confirmar se pagáramos corretamente pelo trecho viajado e uma maneira da empresa confirmar o caixa do trocador. Tantas fichas deveriam corresponder a tantos cruzeiros novos ou qualquer que fosse a moeda da época. Entendíamos muito pouco de contabilidade. Gostávamos do colorido e da presença das fichas. Todo menino tinha sua coleção. Serviam de botão para o jogo de futebol de mesa, de palheta para tocar violão, de distração para os dedos antes do vício do cigarro, enfim, eram um dos objetos mais úteis que se podia ter.
Não me lembro bem como começou a história da ficha azul entre Ana e eu. Foi mais ou menos assim: Ana estava indisposta e não queria sexo. Insisti um pouco. No começo do casamento sabia insistir carinhosa e delicadamente. Ela me propôs trocar o sexo por uma ficha azul. Guardava aquela ficha imaginária e poderia trocá-la por um boquete a qualquer hora. Uma idéia simplesmente sensacional.
A distribuição de fichas azuis teve seu auge alguns meses e anos depois da invenção. Uma visita indesejada da sogra? Uma ficha azul  comprava o bom comportamento do menino que descobrira uma nova coleção. Trabalho trazido para casa, tensão pré menstrual, escova e hidratação caríssimas, quantas oportunidades para uma ficha azul.
Não em lembro do que foi feito da minha coleção das fichas de ônibus. Se as fui perdendo uma a uma ou se depois de adulto me desfiz de todas elas ao mesmo tempo, também não me lembro quando perdi o interesse pelas fichas azuis da Ana.

Ana
Puta que pariu. Essa chucra parece que faz de propósito. As visitas na sala e ela me vem com uma bermuda toda manchada de água sanitária e a blusa caindo aos pedaços de tão puída. As roupas apertadas, aquelas pernas peludas. Me deixou passada, e o pior é que tive que fazer cara de paisagem, não podia reclamar para não jogar ainda ais merda no ventilador. Caralho, será que essa menina não tem noção de nada.
Pior é que chegou o sofá novo, todo lindo, da Artefato, e nem deu para impressionar ninguém, todos só tinham olhos para aquela maltrapilha. Definitivamente ela não combina com a decoração da casa.
Mas deixa estar, vi lá no centro, ao lado do Meneses Cortes, uma loja de uniformes com cada um mais bonito que o outro. A filha da puta vai ficar chique pra cacete.
Convenhamos, a casa está outra coisa, a chucrinha sabe limpar. E cozinhar também. Tenho que vigiar a balança. Esse negócio de jantarzinho toda noite vai me deixar uma baleia. Vou me pesar agora. Acho até que o João já engordou, também o preguiçoso come e vai logo dormir.
Acho que a gente tem até transando menos por conta  dessa comilança. É até bom, pelo menos o sacana não vem mais com aquela história de ficha azul toda hora. Dizem que concentrar a porra é bom pra engravidar.
Quero menino. Menina dá sempre razão ao pai. A gente também pode abraçar mais um filho homem, né?
Jõao é um bonito nome, mas júnior, aí não. Quem sabe Marco Aurélio? Não, Marco Antônio! Nada disso. Detesto nome composto. José. José é muito  nome de pobre. Caralho, será que acabaram-se os nomes bonitos?

João

A sala divide-se num quadrado de dez metros e um retângulo áureo na lateral para fazer a cozinha integrada. Os quarenta centímetros dos armários da cozinha recompõe a medida áurea que tinha sido quebrada pra economizar no piso. João, você é um bruxo! No centro do quadrado o Jequitibá Rosa.
O jequitibá rosa é a maior árvore do Brasil, na língua dos índios quer dizer “gigante da floresta”. Talvez atraia macacos quando estiver cheia de sementes. Ouvi dizer que as sementes do jequitibá são o amendoim torradinho dos macacos. Tem árvore dessas com mais de século, aquela lá de São Paulo tinha trezentos anos, cheia de flores. Usaram tanto para construir casas que está em extinção. Se fosse só construção e móveis até que dava pra ser, mas pegaram uma coisa linda como essa árvore pra fazer cabo de vassoura, lápis, lenha... aí não tem espécie que resista. Cada madeira bonita. Dá dó. Tapinhoã, sucupira, canela, canjarana, jacarandá, araribá, pequi, jenipaparana,peroba, urucurana e vinhático. A mesma coisa lá no sul, a floresta de Araucárias já era, também exploração do Pinheiro do Paraná, que é uma árvore muito feia. A natureza não tem nenhuma vergonha de ser cafona. Um tronco comprido, galhos perpendiculares e aqueles tufos nas pontas. É o poodle das plantas. Se bem que quem sacaneia os poodles são seus próprios donos.
Hum, o cheiro do café. Ela aprendeu mesmo a fazer um bom café. Um nariz grande assim tinha que ter olfato bom. Imagino como dever ser o olfato dos bichos.
Não é a toa que tem gente fazendo projeto só com material de demolição. É legal visitar esses depósitos. Gosto daqueles da Estrada dos Bandeirantes. Aquela bagunça, o cheiro de mofo, a sensação da descoberta. Só depois do projeto pronto. Achar uma porta, um revestimento, uma trave.
Chego a ficar envergonhado quando farejo uma pessoa. Não do meu olfato, fico com vergonha de estar entrando nos segredos da pessoa. É como abrir o armário do banheiro numa festa, só que mais íntimo. O olfato era um instrumento da curiosidade, nem precisava ser curiosidade sexual, podias apenas ser sensorial. Claro, burraldo, é olfato, é sensorial. Era uma maneira sua de conhecer o mundo.
Quando ando na Floresta da tijuca, que já foi uma fazenda de café e foi reflorestada pelo Dom Pedro II, cara interessante esse imperador, gosto do cheiro das folhas em decomposição. O cheiro das jacas podres. Lá tem muita jaqueira e bananeira que vieram da Índia e adoraram o Rio de Janeiro. Como estrangeiro gosta do Rio. Aliás, a cidade é uma droga como produto urbano, mas que cenário. É apaixonante mesmo.
Não era só armário de banheiro não. Abri muito as gavetas das namoradas. Abrir uma gaveta de lingerie é uma delícia. Sabia que Ana vestiria as calcinhas mais bonitas para ele, melhor, as despiria também. Mas não era só olhá-las, era a sensação do crime. Gostava de cheirar mulheres bonitas na rua. Era sempre assim, percebia a aproximação da mulher, melhor num lugar mais fechado, num corredor de ônibus, na época que andava de ônibus, ou num corredor de museu, agora que sou chique. Expiro todo ar dos pulmões e depois inspiro lentamente a medida que ela se aproxima. Tem o cheiro do perfume, do xampu e do sabonete, mas dá para sentir o cheiro da pele e do sovaco. Adoro cheiro de sovaco. Nem impregnado de desodorante, nem depois de um dia inteiro de trabalho, mas aquele cheirinho depois de uma festa, ou depois do banho, fazendo amor sem cosmético nenhum. Cheiro puro do corpo.
A mata cobria quase cem por cento do estado do Rio de Janeiro, agora acho que são só cinco ou sete por cento.
E cheiro de boceta? Quando a química é certa, que delícia. Quente. Úmido. Cheiro de maresia no verão. Do vento quente que vem da praia. Cheiro de água parada. De ostra. De iogurte. De sabão de criança. Cheiro de produto americano de higiene. Cheiro de abacate. De pepino. De pera. De chuva. Cheiro da água da chuva e cheiro de terra molhada também. Água da chuva tem um cheiro muito bom.
Todo mundo fala na biodiversidade, nome esquisito, da Amazônia, da destruição da Amazônia, mas a biodiversidade aqui é igual: Mico-Leão-Dourado, onça-pintada, bicho-preguiça,capivara, o tamanduá-bandeira, o tatu-peludo – será que  tatu é mamífero – a jaguatirica,... sem falar nos passarinhos  e no cachorro-do-mato. Esqueci das cobras, dos jacarés e dos peixes. É muito bicho mesmo. Tudo sendo destruído para construir favela. A Mata Atlântica é a mais destruída no mundo. Ninguém tem pena.
Ainda bem que essa menina se chama Maria, se fosse Luzimeire, ou Ruimara iria levar dez anos pra guardar o nome. Guardava tudo que é nome esquisito, de imperador, de bicho, de planta, de fenômeno científico, mas nome de gente, que difícil.
O cheiro de café está matando.
Não gostava muito de ousadia excessiva de arquiteto, mas o Jequitibá rosa não podia ser derrubado. Nem é só pela lei, seria um pecado de verdade. Quando chegasse no céu poderia dizer para São Pedro: “Me deixa entrar. Uma vez, quando desenhei uma casa, salvei um Jequitibá.” Vou ser levado em consideração, tenho certeza.
Essa Maria quase não tem cheiro. Não usa perfume. Ainda bem, perfume ruim é um dos piores cheiros que tem! É limpinha e não cheira a suor. Ela em o cheiro das coisas da casa, esse desinfetante de amêndoas que cheira à casa americana, á agua sanitária nos dias de faxina, de sabão em pó ou amaciante em dia de lavar roupa, cheiro de tempero no fim da manhã quando terminava a cozinha e cheiro de óleo de madeira. Òleo de madeira é mais uma das suas manias. Óleo de peroba para os móveis de peroba do Tenreiro, de jacarandá para os móveis de jacarandá do Sérgio Rodrigues, cera de abelha para o pau rosa. Seus ídolos moveleiros tinham contribuído para a extinção da mata atlântica. Guardando os móveis com carinho dava um pouco de sentido àquela destruição.

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