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terça-feira, 27 de abril de 2010

Abril

Maria e Ana
- Tô fudida mesmo. Puta que pariu! Que engarrafamento!
Então, como eu ia dizendo: fique tranqüila, vai ser fácil, você vai se adaptar rápido.
Porra, pra quê tá buzinando?
Bem, como somos apenas dois lá em casa, será simples, basta atenção que você se acostuma com as tarefas. Comida simples, vezenquando a gente faz uma coisinha mais especial, e vários dias da semana a gente come fora mesmo.
Porra de celular que não pára de tocar.
Maria, você sabe ler, né?
- Sei sim senhora.
- Tem que anotar todos os recados de quem ligou, essas coisas. E não pode dar nenhuma informação, tá? Ninguém precisa saber onde fomos ou o que estamos fazendo, apenas pergunte quem é, com quem quer falar e anote o recado e o telefone.
Agora eu vou te deixar em casa e voar pra reunião, mais tarde tenho hora marcada no salão, vou te mostrar onde estão as coisas na cozinha e você deixa preparada alguma coisinha pro João jantar, eu jantarei fora hoje, pode fazer um filezinho de peixe que está no freezer, um arroz e salada.
Qual o seu signo?
- Sei não senhora.
- Quando você faz aniversário?
- No documento tá dia 20 de outubro, mas a mãe diz que foi esse dia não. Diz que foi dia 07, dia de Nossa Senhora do Rosário. Erraram lá no cartório.
- Putaquepariu!!! Esses elevadores são foda.
Libra, seu signo é libra.
Antônio, essa é a Maria, trabalha lá em casa agora.
Olha só: avisa pro Gilson que esses elevadores estão com problema, toda semana é esta merda. Ainda bem que eu sou zen.
- Às ordens, moça. Precisando de alguma coisa é só interfonar.
- Agradecida.



Iudete

Ele não vem mesmo. É o primeiro ano que o Ruy não me visita no aniversário. Sei que ele tem a vida dele, que telefonou, comprou presente, mas não e a mesma coisa. Quando ele estava fora tudo bem, mas da Barra até aqui é outra coisa. Quem não gosta de trânsito mora no Leblon.


Maria

- É menina, nada mal, seu cantinho é bem ajeitado!
- Meu Filho não ia nos faltar.
- Nunca vi tanto luxo. Como tem banheiro nessa casa! Tem até agua quente saindo das bicas igual na casa da Gilvânia. Tem banheiro até para mim com água quente,e dentro da casa! E televisão? Tem uma em cada lugar da casa, tem nos quartos, tem na sala, na cozinha, tem até essa pequeninha aqui no meu quarto.
- Menina, deixa de pensar em bobagens. Prestou atenção em tudo que a moça falou? Ela deu ordem de todo tipo, põe na cabeça que você veio pra trabalhar, e que lá em Baú não tem mais trabalho pra ninguém.
- Minha filha, como sua patroa é bonita. Tão bonita assim tem que ter bom coração.
- Preste atenção minha mãe, é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no reino dos céus.

João

A fatoração de quarenta e dois é dois vezes três vezes sete. De trinta e dois é dois ao cubo. Maldita mania de fazer contas. O mínimo múltiplo comum é três vezes sete, vinte e um, vezes quatro, oitenta e oito, vezes dois, um metro e sessenta e seis centímetros. Se o terreno tem quinze metros na face sul, menos cinco de circulação, são dez metros, divididos por um, meia, meia. Seis vezes a unidade de um meia meia, duas janelas de oitenta com seus batentes, piso frio de trinta ou quarenta  uma pequena margem para o mestre de obra, nenhuma peça cortada, economia de cinco a dez por cento no revestimento. A outra lateral, Fibonacci que me perdoe, dezesseis metros e dez centímetros, um retângulo áureo, ou quase isso, com espaço  para o erro dos pedreiros e, agora sim, dez por cento de economia no piso, seja ele de quarenta por quarenta ou de trinta por trinta, mantendo-se espaçamento de dois milímetros...
Hora de um café.
Que saco, agora tem essa menina na casa. Não estou querendo nem ver a cara dela. Não, não tem sentido pagar o salário e não usar o trabalho. Que coisa antiga, empregada doméstica. Eu não sou bagunceiro. Quer dizer, não ligo para a bagunça que eu mesmo faço, me entendo com ela. A Ana não para em casa. Para que essa intromissão? Saí de cueca pra sala e tive que voltar correndo pro quarto. Pô, a casa é minha.
Confesso, café é um dos meus luxos. Forte. Amargo. Um pó de boa qualidade e água filtrada um pouco antes de ferver. Mellita vácuo pro dia a dia. Esse tal de Orfeu também anda muito bom. O pessoal é lá do sul de Minas, foi o Paulo de Poços de Caldas que tinha dado a dica pra ele, aliás, preciso ligar pro Paulo. Eles estão cheios de história com esse café DOC, grão colhido a mão, torragem controlada e coisa e tal, mas como tudo na Brasil pode piorar qualquer momento. Tem que ver se vai dar para confiar. É um pouco mais caro mas dá para substituir o Mellita. Ylli pra fazer expresso. É inacreditável, setenta por cento dos grãos são brasileiros, saem daqui pra ser torrados na Itália e voltar com preço de ouro. A gente tá fazendo café cada vez melhor aqui no Brasil. Tem a Guatemala, a Republica Dominicana e depois somos nós. Terceiro melhor café do mundo. Maior produtor. Maior exportador. Agente só perde pro marketing do FBI americano promovendo a cafeína colombiana pra ver se ela ocupa o lugar da cocaína.
- Mária, ô Maria, faz um cafezinho pra mim, por favor.
Trinta e três é três vezes onze, cabe bem em cento e sessenta e seis. Vinte e dois é dois vezes onze. Faltam dois milímitros, em dez cabe mais uma peça de vinte, em cinco meia peça... Ladrilho hidráulico também vai bem. Talvez até muito bem.
Essas maquininhas da Nespresso estão lindas, mas mil reais a máquina, mais dois reais por cafezinho é demais. Talvez possa ter uma aqui no escritório, pra oferecer prum cliente. Hoje em dia é tudo parcelado no cartão de crédito. Dez de cem, nem dá pra sentir. Vamos ver. 
Esse café não chega. Sem cafeína o cérebro começa a viajar. Todos os entendidos gostam do arábica, mas nada como a injeção intensa de cafeína do robusta...
Cliente novo. Trabalho novo. Tenho que aproveitar a empolgação.
Detesto quando o cliente vem com um desenhinho de planta baixa. Um monte de quadradinhos com um nominho dentro. Essa é uma das minhas artes. Primeiro escuto tudo com muita atenção. Faço as perguntas adequadas: Sala de almoço? Jardim de inverno? E também semeava alguns comentários: Não, não é loucura não, sei mesmo de muita casa aqui no Rio de Janeiro com lareira, mas presta atenção, conseguir um bom limpador de chaminés é uma lenha!
Nessa cidade de sol tão intenso era ele que mandava primeiro, a orientação da casa, a luz, o aproveitamento e dissipação do calor.
Depois tinha o entorno. Era uma cidade de cartões postais. Pra onde as pessoas olhariam das suas janelas? Lembro de um livro de fotografia que ensinava a recortar um retângulo e usá-lo para treinar o enquadramento das fotos. Cada janela era esse retângulo mágico, mudando a fotografia com a hora do dia e com o clima.
Lembrei do professor do curso de fotografia, dois brincos, dois anéis, colar, pulseira, cabelo comprido, costeletas. Cara vaidoso. Como era mesmo o nome dele?
Não tem vista? Viramos a casa para dentro dela mesmo. Não dá pra ter como vista eterna um paredão dos fundos de um prédio ou uma favela que não para de crescer.
Depois o terreno e a maneira como precisa ser tratado. Além de cara, a terraplanagem podia construir palafitas de luxo ou bunkers onde deveria ter-se uma casa.
Já dá pra sentir o cheiro do café escaldando.
Achar uma área de pouca inclinação, respeitar a natureza do terreno. DFrenagem, muito importante, entender a drenagem da água no terreno. Depois era a hora de achar a atmosfera emocional. Estamos numa floresta? Numa área histórica? Alguma coisa no terreno é intocável?
As pessoas... Claro que eram importantes, mas era cada vez mais procurado por pessoas que já conheciam o seu trabalho. Já tinham alguma afinidade estética. É impressionante como os seres humanos são ao mesmo tempo únicos e tão parecidos. Quatro, seis ou oito quartos? Duas salas? Muitos ambientes? Um loft? Sabia negociar pontos de vista.
- Aqui ó, doutô.
- obrigado.
- Fiz um bolinho ontem. Espero que esteja do agrado.
-Obrigado
Tá num pratinho, com a xícara e o pires em cima. A Ana já andou dando instruções por aqui! Um bolo. Há quanto tempo não como um bolo!
Mas o que que é isso? Água suja com melado? Tá pelando. Eu não quero nem engolir.
- Maria, ô Maria!
- Quié?
- Você aprende rápido?
-...
- Então vamos lá na cozinha que vou te ensinar a fazer café do meu jeito. 


Maria

- Preto que nem tinta e amargo igual fel. Não sei por que fui provar daquele café!
- Gente rica tem desses gostos, minha filha.
- O importante é que ele gostou e te elogiou. Devagar você vai aprendendo tudo, Maria. Sem falar no jeito como ele te olhou hoje.
- Cala boca, Tadeu. Não perturba a Maria com suas histórias.
- Eu não sei de nada. Estou falando do que eu vi. Olhar pidão e disfarçado, de rabo de olho, como menino olhando mesa de doce em festa...
- Tadeu!
- Minha filha, hoje nós vamos rezar mais um terço.- E outra! Aquele Antônio lá, não sei não, heim!?   Sujeito que vigia a vida de todo mundo.
- Dá pra ficar quieto?  Mania de implicar com tudo que é homem. Quer que o pobre do homem, que trabalha de porteiro não vigie as pessoas?  Pois ele está ali pra isso mesmo, tomar conta.
- Implicar não. Tenho dever de abrir o olho dela e é o que estou fazendo. Homens são assim, você sabe, não conseguem nem disfarçar mais. O patrão, o porteiro, os vizinhos, o padeiro... todos de olhos compridos. Tem é que tomar cuidado e ter modos. Nada de roupa curta pra descer e ficar de conversa na porta do elevador.
- Mas eu nem fiquei de conversa, não. Fui levar o pedaço de bolo conforme Dona Ana falou.
- Roupa  curta!
- Tadeu, pelo amor de Deus!!! - Vamos rezar, nos três, anda!
- Madrinha, preciso mesmo, viu? Ainda mais hoje, Deus me livre e guarde... Coisa mais estranha. Pauzinho queimando com cheiro forte, música esquisita e ela lá, sentada de olho fechado. Tempão assim. Depois pegou umas carta, Madrinha, coisa mais horrível, cada uma com um desenho mais feio que o outro. Gostei não. Parece coisa de macumbaria aquilo. Desconjuro!
- Deixa de história, anda.
- Sim, senhora.
- Divino Jesus, nós vos oferecemos este terço que vamos rezar, meditando nos mistérios da Vossa redenção. Concedei-nos, por intercessão da Virgem
- Madrinha... só uma coisinha.
- Maria!
- É que...
- Diz, Filha.
- É que hoje meu coração se apertou o dia todinho, saudade lá da roça, da mãe, do pai, das menina. Comecei a escrever uma carta pra eles e me embolei toda com as palavra. Será que desaprendi a escrever, Madrinha?
- Deixa de coisa, Filha. Você está é com a cabeça cheia de coisa, é muita novidade pra você, foi muita mudança. Vamos rezar com fé que amanhã você faz com calma. Você vai ver.
- Sim, senhora.
- Sossega essa cabecinha, Filha.


João
Como está de dieta (louca!). Nada de ovos. Este ano uma poesia:


AMOR DE CHOCOLATE

Que gostoso
O papel de celofane retirado num impulso
O bombom saboreado lentamente
Derrete
Escorre
Lambuza
Deixa entrever e depois revela
Seu recheio rosado
Uma cereja túrgida
Macia, explode na língua
Revela-se um gozo antecipado
Embriaga-me o licor
Ou a doçura?
É preciso fechar os olhos
Rápido!
Prender na memória
Essa felicidade passageira
de um único instante

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