Um mote para trabalharmos: A inspiração é Dom Casmurro, a história de Bentinho e Capitu... Ontem vi um filme do Caio Blat que aborda a questão da traição - real ou imaginária - de maneira semelhante. O Marido é o narrador e culpa a mulher pela sua traição. Assistam, pode ajudar nossa brincadeira aqui.
A história proposta ocorre ao longo de um ano. A trajetória pode ser marcada pelos meses desse ano. Cada um dos mêses sendo narrado a partir do ponto de vista de cada um dos personagens. Existe tensão sexual, mas será que os relacionamentos concretizam-se? Uma mesma realidade e várias percepções distintas. Várias trajetórias de heróis... Um conto de 12 páginas? Um romance de 36 capítulos? Um filme em 90 laudas? O destino dessa história , bem como o destino dos personagens, se resolverá com as colaborações da cada um.
Penso que o texto pode ser escrito em primeira pessoa. Talvez fosse interessante que cada personagem tivesse seu vocabulário, alguns vícios de linguagem e bordões, elementos que a diferenciassem numa narrativa onde todos falarão em primeira pessoa. estou sugerindo uma Ana desbocada e uma Maria que inclui os santos na conversa - sim eles podem participar das conversas sem que os outros interlocutores saibam. Sugeri um personagem duas caras, o Tavares, uma para o público feminino e outra para o público masculino.
Pessoalmente não tenho habilidade e conhecimento para propor um estilo. Talvez ele se encontre ao longo do texto. Talvez cada um de nós imprima um estilo próprio ao seu escrito. Abrem-se inscrições para sugestões.
Acredito que o casal se separará e Maria seguirá seu destino. Será? Talvez essa perturbação sirva para que o casal se conheça, a quebra da rotina arranhando o verniz e permitindo um relacionamento mais verdadeiro. Afinal de contas, quem é o protagonista? Mais do que sim(em)patizar com um personagem, podemos escolher o seu destino, ou pelo menos influenciá-lo.
Existe possibilidade de comunicação entre as pessoas?
Como autores dessa história podemos escrever biografias para os personagens e análises dos seus perfis. Iniciei a descrição de alguns deles, mas podem ser modificados e outros podem ser inventados. Alguém faria uma mapa astral. As características dos signos influenciarão suas personalidades? Se cumpriremos o intervalo de um ano, nossos personagens todos farão aniversário... Faremos festa?
Podemos criar situaçãoes compartilhadas pelos personagens e não é preciso que nós mesmos façamos o desenvolvimento da situação imaginada, ou a reação de todos os personagens. Os meses criam um espaço-tempo. Um evento vivido na casa afeta João, Ana e Maria. Cada um deles sempre relatará os fatos a partir do próprio ponto de vista. Cada leitor acrescenta mais um ponto de vista e teremos um palácio de espelhos.
Se estivemos sem inspiração podemos dar palpites ou criticar quem trabalha...
Além das caixas de postagens podemos usar as caixas de comentários e quem sabe convidar os amigos a deixar sugestões para que possamos ignorá-las?
Experimento 021 - o nome veio da necessidade de se dar um nome ao blog, essa é uma proposta de um determinado projeto, de mistura de Dom Casmurro com novela das 21h, mas outros projetos poderão vir. Alguém dá um nova idéia? Um novo mote? Os trabalhos podem ocorrer paralelo, alguns andarem mais rápido que outros, uns poderão morrer de inanição, outros virar avalanche... Alguém tem idéia prum conto rápido? Seria bom ver algo aprontar-se rapidamente. 021 é o código de área do Rio de Janeiro, mas não impede que paraenses contribuam...
Bem vindos a esse experimento.
Experimento Zero Vinte e Um
A história vem depois do escopo. Lá no Fim tem a descrição dos personagens
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terça-feira, 27 de abril de 2010
Janeiro
João
A orla da Barra tá cheia de puta. Tenho saudades da Rose. Fui com os meninos do S. Bento. Em poucos minutos cada um tinha ido com uma puta. A Rose e eu sobramos. Ela talvez por ser negra e, mesmo antes da anorexia dominar os editorias de moda, um pouco gorda. Gostosona, ela se definia. Eu somava a timidez a falta de grana. Quanto você tem? Tive que explicar que era bolsista. Fui aceito no primeiro ano e podia continuar estudando enquanto tirasse mais que oito em tudo. Estava no sétimo ano e tinha tido sucesso até então. Era meu dinheiro da passagem da semana, pouco, mas não teria nunca mais que aquilo. Vou te fazer um boquete, quer?Ela me adotou. Peguei com um primo um uniforme de escola pública, quando passava o ônibus pedia para entrar pela porta da frente. Tinha que sair mais cedo, nem todos me davam carona, mas a consciência social dos motoristas precedeu em muitos anos o decreto da prefeitura. Ia nas segundas feiras, quando era mais vazio. A primeira vez que a vi nua gozei antes de penetrá-la. Ela foi me ensinando. Respira fundo. pensa noutra coisa. Prende o xixi até não aguentar mais. Corta o xixi no meio. Aperta esse musculo da parte debaixo da barriga e conta até cem. Quando estiver duro força com a mão pra baixo.
Ela me elogiava. Você vai fazer qualquer mulher feliz. Seu pau é de homem, não é de menino não. Os outros dias eram a espera da segunda feira. Como foi difícil tirar oito naquele semestre. Ela parou de me cobrar. Me deu uma correntinha com uma medalha de S. Jerônimo. Depois um relógio. Meu pai foi na escola saber se eu estava roubando. Brigamos por causa disso. Contei a verdade e ele me perguntou de recebia dinheiro da puta. Menti que não. Ele me chamou de cafetão. Foi quando o padre me conseguiu a vaga de ajudante na biblioteca. Era só meio salário mínimo, mas eu não gastava mais passagem mesmo. Um dia não peguei a nota que meu pai deixava para mim na mesa da cozinha. Ela ficou ali quase um ano. Foi quando percebi que éramos mais homens do que pai e filho. Nunca trocamos confidências. Não foi difícil deixar de lado também o dialogo. A Rose me disse que um homem sempre parte o coração de uma mulher e chorou na cama depois de fazer amor. Hoje é aniversário do meu pai. Ainda não foi esse ano que eu esqueci.
Março - Viagem ao Texas
João
De novo na classe econômica. Quando será que eu vou aprender? A falta de espaço não deu chance para o sono, uma noite perdida significa um dia perdido, além do mau humor por mais 24h. Tinha a economia de dinheiro, claro, mas também um pouco de medo de exibir-se, parecer um esnobe, viajando de executiva. Coisa de quem teve infância pobre. Além do que, parecia também coisa de velho: dificuldade para dormir, um corpo cansado pela viagem, a falta de tônus, de flexibilidade. Acostumar-se com a velhice era muito mais difícil do que acostumar-se com a riqueza.
Esse congresso fora como os últimos todos. Um monte de falatório, assuntos repetidos em ladainha, horas de atenção para uma pequena faísca de brilho ou novidade. É assim com tudo na vida, sempre muito trabalho e prêmios escassos.
Os Estados Unidos são sempre fascinantes. Esse intrincado de rodovias, viadutos, de pistas que sobem e descem, a abundância de sinalização sempre me impressionam. Talvez mais impressionante ainda que haja engarrafamentos. Já as calçadas e as lojas, ao contrário das estradas, estavam aflitivamente vazias. Lembro-me de viajar para o Peru, para a Argentina, a Espanha em épocas de recessão, notei o mesmo fenômeno, calçadas vazias e inúmeros anúncios de aluguel. Ao contrário dos outros lugares não havia camelôs em Fort Worth.
Fiquei com uma questão me martelando, o excesso de infra-estrutura. Excesso da casas, de lojas, de escritórios, de vias, de meios de transporte. Quando será que eles perderão a escala? Será que já perderam? O deficit público estatal financiando empresas que já não se sustentam mais pelas leis da oferta e da procura. Essa aparente calma não é um lento agonizar americano? Um bonito por do sol que não deixa entrever a escuridão da noite que chega? E depois? Depois de saciadas todas as necessidades, até onde nos levam as vontades?
Do ponto de vista artístico não há dúvida, a arte floresce com a riqueza. Os patronos, os governos, as corporações, é preciso grana sobrando para realizar-se arte em grande escala. Como precisa a arqueitetura. Só depois de superadas as necessidades, guiadas pelas vontades, pelas aspirações de eternidade é que se faz uma bela arquitetura. É o que resta dos egípicios, dos persas, dos romanos, mas a solidez do concreto não sustenta a sociedade. Como Artaxerxes, o grande rei arquiteto que entrega a Alexandre o império conquistado por Dário. Dário e Alexande , ambos cognominados...Será que essa palavra existe? Estava viciado no google do seu celular, durante o vôo não podia consultá-lo. Vamos refrasear... droga, será que essa palavra existe? Em inglês eu tenho certeza rephrase , mas será que é assim que se escrev? Vamos lá outra vez, ambos chamados de “O Grande”. Dário O Grande, Alexandre O Grande. Já Artaxerxes é apenas uma página no livro de história da arquitetura. Talvez a arte aconteça quando a violência é superada. Hannah Arendt escreveu isso, a violência é uma necessidade do estado - do poder - embrionário.
Seriam antagônicos, arte e violência? A violência uma força geradora de realidades. A arte substituindo a realidade pelos conceitos. Uma forma opulenta de decadência?
Oito horas de viagem. Os olhos estão fechados, o sono não vem. Ana tem razão, talvez ele seja incapaz de um pensamento prático. Só baboseiras que nem para trazer o sono servem.
Oito horas faltam quatro, sessenta e seis por cento do tempo decorrido. Duzentos e quarenta minutos. Quanto dá duzentos e quarenta vezes sessenta? Poucas horas para poder ter um pouco de sono repousante. Duzentos e quarenta vezes dez, dois mil e quatrocentos, vezes quatro, nove mil e seiscentos, mais a metade , quatorze mil e quatrocentos segundos, não, minutos. Menos duas horas de fuso horário. As contas também não estavam ajudando a trazer o sono. Quando nadava contava as voltas na piscina, as braçadas nos cinquenta metros, as respirações na ida e volta, os ladrilhos da piscina. A mente para um lado o corpo para o outro.
Me dei conta que a Ana é a voz da minha interlocutora nos diálogos internos, ou talvez esteja pensando como quem escreve uma carta:
“Querida Ana,
Vivi uma situação curiosa. Assisti a chegada de uma picape dos anos setenta ao estacionamento do Museu de Arte Moderna de Fort Worth – é pequeno mas tem um acervo caprichado.
Saem de dentro da picape enferrujado um típico cow-boy texano acompanhado da sua mulher.
Meus preconceitos não o encaixavam no cenário do museu, talvez na frente da TV tomando cerveja enquanto a mulher cuida da casa, talvez nos afazeres da fazenda de gado ou consertando, com sucesso apenas temporário, a velha caminhonete.
Lá dentro o vejo apreciando os quadros com uma lente de aumento, enquanto a mulher consulta um grosso livro sobre arte moderna.
Não eram cow-boys, eram coinesseurs... Ao contrário de mim, um diletante profissional!”
Não, era mais que isso. Ana era sua companheira mesmo quando estava ausente, sua presença não era mais apenas física, ela também morava dentro dele.
Ana
Que porra de e-mail é esse? Será que esse filho da puta nunca escreveu pruma namorada. Nenhuma menção a falta que ela faz, nenhuma declaração de amor, uma lembrança que seja. Ele é tão metido a erudito, podia citar a Cássia: " Eu caso contente; Papel passado e presente; Desembrulhado o vestido; Eu volto logo, me espera; Não brigue nunca comigo; Eu quero ver nossos filhos..." Qualquer merda, menos um textinho tão impessoal.
Ele tá pensando que o fodão do Indiana Jones? O mega fodão do Leví-Strauss? Dá uma voltinha no quarteirão e fica peidando sociologias?
Só porque encarava delegado olho no olho, porque arrebentava na profissão, porque falava mais palavrão que qualquer estivador, esqueciam que ela era mulher. Isso: MULHER. Caralho, não é óbvio, basta olhar para mim, porra. Aliás esse sempre foi um problema, os peitos, a bunda, a buceta chegavam sempre antes dela mesma nos lugares. Homens ou mulheres, julgavam-na pela aparência. Tinha sempre que provar que era mais do que bonita ou gostosa. Sétima filha, depois de seis irmãos homens, estava acostumada a brigar!
Sete, oito, nove, dez... já tá passando a raiva.
O João é assim mesmo. Vive nesse mundinho da cabeça dele. Eu até o admiro por isso, preciso admitir, caralho. Tem essa coisa de estar mais ligado aos princípios, a essência das coisas do que à merda da realidade. É um pouco de ilusão mas é também caráter. É surpreendente como ele conseguiu se destacar profissionalmente sendo assim tão avoado. É estrela e essa coisa de artista que arquiteto tem.
Vou responder o e-mail:
"João caríssimo, vc acabou de perder a companheira de praia. Hoje sai da dermatologista irritada com as primeiras marcas do tempo. Despigmentação pela ação do sol. Você ainda quer sair pra dançar?"
Maria
- Pronto minha filha, a malinha da D. Euzébia cabeu tudinho, até com um pouquinho de folga. As carlotinhas vão te sustentar bem na viagem.
- Então menina, separou os documentos?Atenção, não fala com nenhum estranho, não aceita nada de ninguém.
- Maria lembra que você é filha de Neuza e de Bastião. Você é pobre mas é moça honesta. Presta bastante atenção para você aprender tudo e logo poder ser de valia para a casa.
- Obrigado minha santa, obrigado meu Pai, obrigada meu santinho, fiquem sempre pertinho de mim que sem vocês eu não consigo. É tanta coisa junta que eu tô sentindo eu nem sei mais de nada. Dá um medão danado sair aqui de Baú, de pertinho da mãe e do pai e ir pro Rio de Janeiro. Se ainda fosse pra Cardoso morar com as meninas, ajudar com as crianças, não assustava tanto. Ah o Rio de Janeiro.... Deve ter tanta coisa linda! Quando pedi a bença pra madrinha ela me mostrou um cartão postal do Cristo Redentor, prometi rezar um terço lá um dia.
- Minha filha, vamos rezar antes que o sono chegue.
Abril
Maria e Ana
- Tô fudida mesmo. Puta que pariu! Que engarrafamento!
Então, como eu ia dizendo: fique tranqüila, vai ser fácil, você vai se adaptar rápido.
Porra, pra quê tá buzinando?
Bem, como somos apenas dois lá em casa, será simples, basta atenção que você se acostuma com as tarefas. Comida simples, vezenquando a gente faz uma coisinha mais especial, e vários dias da semana a gente come fora mesmo.
Porra de celular que não pára de tocar.
Maria, você sabe ler, né?
- Sei sim senhora.
- Tem que anotar todos os recados de quem ligou, essas coisas. E não pode dar nenhuma informação, tá? Ninguém precisa saber onde fomos ou o que estamos fazendo, apenas pergunte quem é, com quem quer falar e anote o recado e o telefone.
Agora eu vou te deixar em casa e voar pra reunião, mais tarde tenho hora marcada no salão, vou te mostrar onde estão as coisas na cozinha e você deixa preparada alguma coisinha pro João jantar, eu jantarei fora hoje, pode fazer um filezinho de peixe que está no freezer, um arroz e salada.
Qual o seu signo?
- Sei não senhora.
- Quando você faz aniversário?
- No documento tá dia 20 de outubro, mas a mãe diz que foi esse dia não. Diz que foi dia 07, dia de Nossa Senhora do Rosário. Erraram lá no cartório.
- Putaquepariu!!! Esses elevadores são foda.
Libra, seu signo é libra.
Antônio, essa é a Maria, trabalha lá em casa agora.
Olha só: avisa pro Gilson que esses elevadores estão com problema, toda semana é esta merda. Ainda bem que eu sou zen.
- Às ordens, moça. Precisando de alguma coisa é só interfonar.
- Agradecida.
Iudete
Ele não vem mesmo. É o primeiro ano que o Ruy não me visita no aniversário. Sei que ele tem a vida dele, que telefonou, comprou presente, mas não e a mesma coisa. Quando ele estava fora tudo bem, mas da Barra até aqui é outra coisa. Quem não gosta de trânsito mora no Leblon.
Maria
- É menina, nada mal, seu cantinho é bem ajeitado!
- Meu Filho não ia nos faltar.
- Nunca vi tanto luxo. Como tem banheiro nessa casa! Tem até agua quente saindo das bicas igual na casa da Gilvânia. Tem banheiro até para mim com água quente,e dentro da casa! E televisão? Tem uma em cada lugar da casa, tem nos quartos, tem na sala, na cozinha, tem até essa pequeninha aqui no meu quarto.
- Menina, deixa de pensar em bobagens. Prestou atenção em tudo que a moça falou? Ela deu ordem de todo tipo, põe na cabeça que você veio pra trabalhar, e que lá em Baú não tem mais trabalho pra ninguém.
- Minha filha, como sua patroa é bonita. Tão bonita assim tem que ter bom coração.
- Preste atenção minha mãe, é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no reino dos céus.
João
A fatoração de quarenta e dois é dois vezes três vezes sete. De trinta e dois é dois ao cubo. Maldita mania de fazer contas. O mínimo múltiplo comum é três vezes sete, vinte e um, vezes quatro, oitenta e oito, vezes dois, um metro e sessenta e seis centímetros. Se o terreno tem quinze metros na face sul, menos cinco de circulação, são dez metros, divididos por um, meia, meia. Seis vezes a unidade de um meia meia, duas janelas de oitenta com seus batentes, piso frio de trinta ou quarenta uma pequena margem para o mestre de obra, nenhuma peça cortada, economia de cinco a dez por cento no revestimento. A outra lateral, Fibonacci que me perdoe, dezesseis metros e dez centímetros, um retângulo áureo, ou quase isso, com espaço para o erro dos pedreiros e, agora sim, dez por cento de economia no piso, seja ele de quarenta por quarenta ou de trinta por trinta, mantendo-se espaçamento de dois milímetros...
Hora de um café.
Que saco, agora tem essa menina na casa. Não estou querendo nem ver a cara dela. Não, não tem sentido pagar o salário e não usar o trabalho. Que coisa antiga, empregada doméstica. Eu não sou bagunceiro. Quer dizer, não ligo para a bagunça que eu mesmo faço, me entendo com ela. A Ana não para em casa. Para que essa intromissão? Saí de cueca pra sala e tive que voltar correndo pro quarto. Pô, a casa é minha.
Confesso, café é um dos meus luxos. Forte. Amargo. Um pó de boa qualidade e água filtrada um pouco antes de ferver. Mellita vácuo pro dia a dia. Esse tal de Orfeu também anda muito bom. O pessoal é lá do sul de Minas, foi o Paulo de Poços de Caldas que tinha dado a dica pra ele, aliás, preciso ligar pro Paulo. Eles estão cheios de história com esse café DOC, grão colhido a mão, torragem controlada e coisa e tal, mas como tudo na Brasil pode piorar qualquer momento. Tem que ver se vai dar para confiar. É um pouco mais caro mas dá para substituir o Mellita. Ylli pra fazer expresso. É inacreditável, setenta por cento dos grãos são brasileiros, saem daqui pra ser torrados na Itália e voltar com preço de ouro. A gente tá fazendo café cada vez melhor aqui no Brasil. Tem a Guatemala, a Republica Dominicana e depois somos nós. Terceiro melhor café do mundo. Maior produtor. Maior exportador. Agente só perde pro marketing do FBI americano promovendo a cafeína colombiana pra ver se ela ocupa o lugar da cocaína.
- Mária, ô Maria, faz um cafezinho pra mim, por favor.
Trinta e três é três vezes onze, cabe bem em cento e sessenta e seis. Vinte e dois é dois vezes onze. Faltam dois milímitros, em dez cabe mais uma peça de vinte, em cinco meia peça... Ladrilho hidráulico também vai bem. Talvez até muito bem.
Essas maquininhas da Nespresso estão lindas, mas mil reais a máquina, mais dois reais por cafezinho é demais. Talvez possa ter uma aqui no escritório, pra oferecer prum cliente. Hoje em dia é tudo parcelado no cartão de crédito. Dez de cem, nem dá pra sentir. Vamos ver.
Esse café não chega. Sem cafeína o cérebro começa a viajar. Todos os entendidos gostam do arábica, mas nada como a injeção intensa de cafeína do robusta...
Cliente novo. Trabalho novo. Tenho que aproveitar a empolgação.
Detesto quando o cliente vem com um desenhinho de planta baixa. Um monte de quadradinhos com um nominho dentro. Essa é uma das minhas artes. Primeiro escuto tudo com muita atenção. Faço as perguntas adequadas: Sala de almoço? Jardim de inverno? E também semeava alguns comentários: Não, não é loucura não, sei mesmo de muita casa aqui no Rio de Janeiro com lareira, mas presta atenção, conseguir um bom limpador de chaminés é uma lenha!
Nessa cidade de sol tão intenso era ele que mandava primeiro, a orientação da casa, a luz, o aproveitamento e dissipação do calor.
Depois tinha o entorno. Era uma cidade de cartões postais. Pra onde as pessoas olhariam das suas janelas? Lembro de um livro de fotografia que ensinava a recortar um retângulo e usá-lo para treinar o enquadramento das fotos. Cada janela era esse retângulo mágico, mudando a fotografia com a hora do dia e com o clima.
Lembrei do professor do curso de fotografia, dois brincos, dois anéis, colar, pulseira, cabelo comprido, costeletas. Cara vaidoso. Como era mesmo o nome dele?
Não tem vista? Viramos a casa para dentro dela mesmo. Não dá pra ter como vista eterna um paredão dos fundos de um prédio ou uma favela que não para de crescer.
Depois o terreno e a maneira como precisa ser tratado. Além de cara, a terraplanagem podia construir palafitas de luxo ou bunkers onde deveria ter-se uma casa.
Já dá pra sentir o cheiro do café escaldando.
Achar uma área de pouca inclinação, respeitar a natureza do terreno. DFrenagem, muito importante, entender a drenagem da água no terreno. Depois era a hora de achar a atmosfera emocional. Estamos numa floresta? Numa área histórica? Alguma coisa no terreno é intocável?
As pessoas... Claro que eram importantes, mas era cada vez mais procurado por pessoas que já conheciam o seu trabalho. Já tinham alguma afinidade estética. É impressionante como os seres humanos são ao mesmo tempo únicos e tão parecidos. Quatro, seis ou oito quartos? Duas salas? Muitos ambientes? Um loft? Sabia negociar pontos de vista.
- Aqui ó, doutô.
- obrigado.
- Fiz um bolinho ontem. Espero que esteja do agrado.
-Obrigado
Tá num pratinho, com a xícara e o pires em cima. A Ana já andou dando instruções por aqui! Um bolo. Há quanto tempo não como um bolo!
Mas o que que é isso? Água suja com melado? Tá pelando. Eu não quero nem engolir.
- Maria, ô Maria!
- Quié?
- Você aprende rápido?
-...
- Então vamos lá na cozinha que vou te ensinar a fazer café do meu jeito.
Maria
- Preto que nem tinta e amargo igual fel. Não sei por que fui provar daquele café!
- Gente rica tem desses gostos, minha filha.
- O importante é que ele gostou e te elogiou. Devagar você vai aprendendo tudo, Maria. Sem falar no jeito como ele te olhou hoje.
- Cala boca, Tadeu. Não perturba a Maria com suas histórias.
- Eu não sei de nada. Estou falando do que eu vi. Olhar pidão e disfarçado, de rabo de olho, como menino olhando mesa de doce em festa...
- Tadeu!
- Minha filha, hoje nós vamos rezar mais um terço.- E outra! Aquele Antônio lá, não sei não, heim!? Sujeito que vigia a vida de todo mundo.
- Dá pra ficar quieto? Mania de implicar com tudo que é homem. Quer que o pobre do homem, que trabalha de porteiro não vigie as pessoas? Pois ele está ali pra isso mesmo, tomar conta.
- Implicar não. Tenho dever de abrir o olho dela e é o que estou fazendo. Homens são assim, você sabe, não conseguem nem disfarçar mais. O patrão, o porteiro, os vizinhos, o padeiro... todos de olhos compridos. Tem é que tomar cuidado e ter modos. Nada de roupa curta pra descer e ficar de conversa na porta do elevador.
- Mas eu nem fiquei de conversa, não. Fui levar o pedaço de bolo conforme Dona Ana falou.
- Roupa curta!
- Tadeu, pelo amor de Deus!!! - Vamos rezar, nos três, anda!
- Madrinha, preciso mesmo, viu? Ainda mais hoje, Deus me livre e guarde... Coisa mais estranha. Pauzinho queimando com cheiro forte, música esquisita e ela lá, sentada de olho fechado. Tempão assim. Depois pegou umas carta, Madrinha, coisa mais horrível, cada uma com um desenho mais feio que o outro. Gostei não. Parece coisa de macumbaria aquilo. Desconjuro!
- Deixa de história, anda.
- Sim, senhora.
- Divino Jesus, nós vos oferecemos este terço que vamos rezar, meditando nos mistérios da Vossa redenção. Concedei-nos, por intercessão da Virgem
- Madrinha... só uma coisinha.
- Maria!
- É que...
- Diz, Filha.
- É que hoje meu coração se apertou o dia todinho, saudade lá da roça, da mãe, do pai, das menina. Comecei a escrever uma carta pra eles e me embolei toda com as palavra. Será que desaprendi a escrever, Madrinha?
- Deixa de coisa, Filha. Você está é com a cabeça cheia de coisa, é muita novidade pra você, foi muita mudança. Vamos rezar com fé que amanhã você faz com calma. Você vai ver.
- Sim, senhora.
- Sossega essa cabecinha, Filha.
João
Como está de dieta (louca!). Nada de ovos. Este ano uma poesia:AMOR DE CHOCOLATE
Que gostoso
O papel de celofane retirado num impulso
O bombom saboreado lentamente
Derrete
Escorre
Lambuza
Deixa entrever e depois revela
Seu recheio rosado
Uma cereja túrgida
Macia, explode na língua
Revela-se um gozo antecipado
Embriaga-me o licor
Ou a doçura?
É preciso fechar os olhos
Rápido!
Prender na memória
Essa felicidade passageira
de um único instante
maio
João
Essa época do ano sempre foi a minha predileta. O céu do Rio de Janeiro ganha um tom único de azul, e ao contrário de outras estações, o outono quase não tem nuvens. Uma vez fizeram uma pesquisa e nosso céu foi considerado o mais azul do planeta. Deve ter sido em maio. Lembro que ia para a escola de casaco, gostava especialmente de uma casaco de algodão com as mangas e gola em malha canelada, fechado com um zíper que se desencaixava em baixo. O suficiente para o frio das seis horas da manhã quando pegava o ônibus para a escola, pela hora do recreio já não era mais necessário.
Os ônibus naquela época usavam fichas coloridas para identificar as passagens. Do ponto final à metade do trajeto uma ficha azul, da metade ao fim uma ficha amarela, uma ficha vermelha dava direito ao percurso inteiro. as vezes um fiscal passava de cadeira em cadeira verificando as fichas e trajetos. A ficha deveria ser colocada numa espécie de garrafa cofre ao lado da porta do motorista. era uma maneira do motorista confirmar se pagáramos corretamente pelo trecho viajado e uma maneira da empresa confirmar o caixa do trocador. Tantas fichas deveriam corresponder a tantos cruzeiros novos ou qualquer que fosse a moeda da época. Entendíamos muito pouco de contabilidade. Gostávamos do colorido e da presença das fichas. Todo menino tinha sua coleção. Serviam de botão para o jogo de futebol de mesa, de palheta para tocar violão, de distração para os dedos antes do vício do cigarro, enfim, eram um dos objetos mais úteis que se podia ter.
Não me lembro bem como começou a história da ficha azul entre Ana e eu. Foi mais ou menos assim: Ana estava indisposta e não queria sexo. Insisti um pouco. No começo do casamento sabia insistir carinhosa e delicadamente. Ela me propôs trocar o sexo por uma ficha azul. Guardava aquela ficha imaginária e poderia trocá-la por um boquete a qualquer hora. Uma idéia simplesmente sensacional.
A distribuição de fichas azuis teve seu auge alguns meses e anos depois da invenção. Uma visita indesejada da sogra? Uma ficha azul comprava o bom comportamento do menino que descobrira uma nova coleção. Trabalho trazido para casa, tensão pré menstrual, escova e hidratação caríssimas, quantas oportunidades para uma ficha azul.
Não em lembro do que foi feito da minha coleção das fichas de ônibus. Se as fui perdendo uma a uma ou se depois de adulto me desfiz de todas elas ao mesmo tempo, também não me lembro quando perdi o interesse pelas fichas azuis da Ana.
Ana
Puta que pariu. Essa chucra parece que faz de propósito. As visitas na sala e ela me vem com uma bermuda toda manchada de água sanitária e a blusa caindo aos pedaços de tão puída. As roupas apertadas, aquelas pernas peludas. Me deixou passada, e o pior é que tive que fazer cara de paisagem, não podia reclamar para não jogar ainda ais merda no ventilador. Caralho, será que essa menina não tem noção de nada.
Pior é que chegou o sofá novo, todo lindo, da Artefato, e nem deu para impressionar ninguém, todos só tinham olhos para aquela maltrapilha. Definitivamente ela não combina com a decoração da casa.
Mas deixa estar, vi lá no centro, ao lado do Meneses Cortes, uma loja de uniformes com cada um mais bonito que o outro. A filha da puta vai ficar chique pra cacete.
Convenhamos, a casa está outra coisa, a chucrinha sabe limpar. E cozinhar também. Tenho que vigiar a balança. Esse negócio de jantarzinho toda noite vai me deixar uma baleia. Vou me pesar agora. Acho até que o João já engordou, também o preguiçoso come e vai logo dormir.
Acho que a gente tem até transando menos por conta dessa comilança. É até bom, pelo menos o sacana não vem mais com aquela história de ficha azul toda hora. Dizem que concentrar a porra é bom pra engravidar.
Quero menino. Menina dá sempre razão ao pai. A gente também pode abraçar mais um filho homem, né?
Jõao é um bonito nome, mas júnior, aí não. Quem sabe Marco Aurélio? Não, Marco Antônio! Nada disso. Detesto nome composto. José. José é muito nome de pobre. Caralho, será que acabaram-se os nomes bonitos?
João
A sala divide-se num quadrado de dez metros e um retângulo áureo na lateral para fazer a cozinha integrada. Os quarenta centímetros dos armários da cozinha recompõe a medida áurea que tinha sido quebrada pra economizar no piso. João, você é um bruxo! No centro do quadrado o Jequitibá Rosa.
O jequitibá rosa é a maior árvore do Brasil, na língua dos índios quer dizer “gigante da floresta”. Talvez atraia macacos quando estiver cheia de sementes. Ouvi dizer que as sementes do jequitibá são o amendoim torradinho dos macacos. Tem árvore dessas com mais de século, aquela lá de São Paulo tinha trezentos anos, cheia de flores. Usaram tanto para construir casas que está em extinção. Se fosse só construção e móveis até que dava pra ser, mas pegaram uma coisa linda como essa árvore pra fazer cabo de vassoura, lápis, lenha... aí não tem espécie que resista. Cada madeira bonita. Dá dó. Tapinhoã, sucupira, canela, canjarana, jacarandá, araribá, pequi, jenipaparana,peroba, urucurana e vinhático. A mesma coisa lá no sul, a floresta de Araucárias já era, também exploração do Pinheiro do Paraná, que é uma árvore muito feia. A natureza não tem nenhuma vergonha de ser cafona. Um tronco comprido, galhos perpendiculares e aqueles tufos nas pontas. É o poodle das plantas. Se bem que quem sacaneia os poodles são seus próprios donos.
Hum, o cheiro do café. Ela aprendeu mesmo a fazer um bom café. Um nariz grande assim tinha que ter olfato bom. Imagino como dever ser o olfato dos bichos.
Não é a toa que tem gente fazendo projeto só com material de demolição. É legal visitar esses depósitos. Gosto daqueles da Estrada dos Bandeirantes. Aquela bagunça, o cheiro de mofo, a sensação da descoberta. Só depois do projeto pronto. Achar uma porta, um revestimento, uma trave.
Chego a ficar envergonhado quando farejo uma pessoa. Não do meu olfato, fico com vergonha de estar entrando nos segredos da pessoa. É como abrir o armário do banheiro numa festa, só que mais íntimo. O olfato era um instrumento da curiosidade, nem precisava ser curiosidade sexual, podias apenas ser sensorial. Claro, burraldo, é olfato, é sensorial. Era uma maneira sua de conhecer o mundo.
Quando ando na Floresta da tijuca, que já foi uma fazenda de café e foi reflorestada pelo Dom Pedro II, cara interessante esse imperador, gosto do cheiro das folhas em decomposição. O cheiro das jacas podres. Lá tem muita jaqueira e bananeira que vieram da Índia e adoraram o Rio de Janeiro. Como estrangeiro gosta do Rio. Aliás, a cidade é uma droga como produto urbano, mas que cenário. É apaixonante mesmo.
Não era só armário de banheiro não. Abri muito as gavetas das namoradas. Abrir uma gaveta de lingerie é uma delícia. Sabia que Ana vestiria as calcinhas mais bonitas para ele, melhor, as despiria também. Mas não era só olhá-las, era a sensação do crime. Gostava de cheirar mulheres bonitas na rua. Era sempre assim, percebia a aproximação da mulher, melhor num lugar mais fechado, num corredor de ônibus, na época que andava de ônibus, ou num corredor de museu, agora que sou chique. Expiro todo ar dos pulmões e depois inspiro lentamente a medida que ela se aproxima. Tem o cheiro do perfume, do xampu e do sabonete, mas dá para sentir o cheiro da pele e do sovaco. Adoro cheiro de sovaco. Nem impregnado de desodorante, nem depois de um dia inteiro de trabalho, mas aquele cheirinho depois de uma festa, ou depois do banho, fazendo amor sem cosmético nenhum. Cheiro puro do corpo.
A mata cobria quase cem por cento do estado do Rio de Janeiro, agora acho que são só cinco ou sete por cento.
E cheiro de boceta? Quando a química é certa, que delícia. Quente. Úmido. Cheiro de maresia no verão. Do vento quente que vem da praia. Cheiro de água parada. De ostra. De iogurte. De sabão de criança. Cheiro de produto americano de higiene. Cheiro de abacate. De pepino. De pera. De chuva. Cheiro da água da chuva e cheiro de terra molhada também. Água da chuva tem um cheiro muito bom.
Todo mundo fala na biodiversidade, nome esquisito, da Amazônia, da destruição da Amazônia, mas a biodiversidade aqui é igual: Mico-Leão-Dourado, onça-pintada, bicho-preguiça,capivara, o tamanduá-bandeira, o tatu-peludo – será que tatu é mamífero – a jaguatirica,... sem falar nos passarinhos e no cachorro-do-mato. Esqueci das cobras, dos jacarés e dos peixes. É muito bicho mesmo. Tudo sendo destruído para construir favela. A Mata Atlântica é a mais destruída no mundo. Ninguém tem pena.
Ainda bem que essa menina se chama Maria, se fosse Luzimeire, ou Ruimara iria levar dez anos pra guardar o nome. Guardava tudo que é nome esquisito, de imperador, de bicho, de planta, de fenômeno científico, mas nome de gente, que difícil.
O cheiro de café está matando.
Não gostava muito de ousadia excessiva de arquiteto, mas o Jequitibá rosa não podia ser derrubado. Nem é só pela lei, seria um pecado de verdade. Quando chegasse no céu poderia dizer para São Pedro: “Me deixa entrar. Uma vez, quando desenhei uma casa, salvei um Jequitibá.” Vou ser levado em consideração, tenho certeza.
Essa Maria quase não tem cheiro. Não usa perfume. Ainda bem, perfume ruim é um dos piores cheiros que tem! É limpinha e não cheira a suor. Ela em o cheiro das coisas da casa, esse desinfetante de amêndoas que cheira à casa americana, á agua sanitária nos dias de faxina, de sabão em pó ou amaciante em dia de lavar roupa, cheiro de tempero no fim da manhã quando terminava a cozinha e cheiro de óleo de madeira. Òleo de madeira é mais uma das suas manias. Óleo de peroba para os móveis de peroba do Tenreiro, de jacarandá para os móveis de jacarandá do Sérgio Rodrigues, cera de abelha para o pau rosa. Seus ídolos moveleiros tinham contribuído para a extinção da mata atlântica. Guardando os móveis com carinho dava um pouco de sentido àquela destruição.
Junho
João
Estranho esse negócio de não ter que lavar louça. Meu pai era super rigoroso quando era criança. Depois das refeições cada um lavava a sua própria louça. Ele fazia a comida e revezava comigo, dia sim, dia não, a lavagem das panelas. Quando fui morar com meus amigos era uma briga, as louças formavam grandes pilhas. A regra era invertida, quem precisava de um copo, tinha que lavá-lo na hora da sede.
Quando somos jovens sempre achamos que alguém pode lavar a louça pra gente. Que tem alguém que é responsável por nós e por nossa bagunça. Não funciona na república e não funciona na vida: Sujou, tem que lavar!
Depois de adulto vemos que somos nós mesmos os responsáveis por tudo, pelas decisões e pelas conseqüências. Lavar a louça transcende o ato em si, é uma metáfora da vida. Quem lava a louça é adulto e sabe cuidar de si mesmo.
Agora isso. Uma empregada. Nada de lavar louça. Além de ser a coisa mais cafona do mundo ainda por cima é subversivo!
Julho
Ana
- Oi, amiga. Tá tudo bem? Eu também, Nanda. A gente precisa marcar sim, tanta coisa pra falar.
É mesmo? Ah, você só pode estar exagerando, amiga, você tá ótima, nem vem.
Exagero seu, esse lance de fazer dietas malucas é loucura pura, Fernanda.
Você precisa relaxar, meditar, deixar a força você tem se manifeste.
Tudo é energia. Pensa positivo.
Olha, Mercúrio e Saturno estão em conjunção, a Lua hoje transita em Touro. Momento perfeito pra se conectar com o Bem Maior.
Tá, eu aviso. Deixa te perguntar uma coisa... Você conseguiu o telefone da decoradora?
Tá, esquece não, heim!?
Beijo.
Mais um minuto e perguntaria se ela não quer se fuder. Mulher insegura é foda.
Bateria no fim já.
- Oi, João.
- Cinema? Tá, pode ser. Que horas? Tá. Beijo.
Porra, sempre a mesma coisa... circuito alternativo... mania de querer exalar ares de pseudo-intelectual, mania besta. Engraçado como as coisas mudam...
Nos conhecemos em Paris, comemos ostras frescas, percebemos que tínhamos várias coisas em comum. Ambição por dinheiro, gosto refinado por vinho, senso de humor.
Agora, muito fora de hora, ele quer manter um ar blasé... Acha que nessa altura do campeonato deu pra fingir que é comunista, pensa que é charme. Vai se fuder... Só falta me convidar pra ir pra Cuba.
Não conversa mais comigo, fica lendo, lendo.
Gosta de Van Gogh, mas prefere Dali. Diz que Gandhi é o Jesus moderno. A metafísica de Platão é legal. Descartes é foda! Kant é muito bom, Nietzshe era melhor antes de ficar doido, Sócrates é um chato. Adorno é ótimo, mas crítico demais. Rosseau é bom. Meu preferido... Heidegger e Durkheim. Marx. Kafka é meio chato, mas Cervantes é ótimo.
Só isso. Esse é o assunto. Ainda critica o futebol.
Mentira ninguém conhece isso tudo.
E deu agora pra sair todo dia, reunião e mais reunião. Tá estranho. Não é coisa da minha cabeça.
Me convida pro cinema e acha que tá me fazendo feliz.
Não tem mais aquele tesão por mim, eu sei. Vivia querendo transar e agora vive cansado.
Unhas feitas, cabelo escovado, depilação ok. Pra quê?
Pra ir ao cinema ver filminho Cult e depois ouvir alguma coisa sobre filosofia ou sobre como está caro o papel vegetal.
Maria
- Cada coisa bonita. Olha a quantidade de sapato! Tanta roupa...
Esse vestido aqui. Lindo.
E deu em mim certinho, gostei.
- Valei-me, meu Jesus Cristo. Tira isso, Maria. Isso não está certo, não é seu. Se dona Ana te pega vestindo as coisas dela você já viu, né?
- Ih, madrinha, quê que tem?
- Vá fazer suas obrigações.
- Bem que queria tomar banho de banheira, vestir essas roupa bonita, jantá fora. Queria era conseguir marido rico igual ao doutô. Rico e bonito. Parece artista até! E sabe que ele me olha, né?
- Tá vendo novela demais, isso sim.
- Tô falando! Essa menina tá saidinha demais. Tá virando a cabeça. Mas não posso falar que você me manda ficar calado, como se eu não soubesse de nada. Veja se é coisa de menina direita. Agora anda reparando no olhar dos homens.
- Meu filho, reparar todo mundo repara. O que não tá certo é isso de ela querer ser outra pessoa, ter o que não tem. A gente tem que se conformar com o que Deus nos deu.
- Cobiça é pecado, inveja também, ela precisa ir à missa, se confessar, ouvir sermão do padre. A gente tá dando conta não.
- A gente tem que se conformar com o que Deus nos deu, minha filha.
- Contentar com pobreza? A gente vê as coisa bonita e não pode ter, trabalha dia e noite pra fazer os outro feliz. Isso é vida, não. Vê a vida da mãe... cheia de ruga, trabalhando noite e dia... nunca foi feliz, nunca passeou, nunca nada. Quero isso pra mim não.
- Quê isso, filha? Deus sempre foi muito bom pra você, pra sua família, todo mundo com saúde. Suas irmãs casadas...
- Casadas com pobre. Grande coisa.
- Minha filha, Num estou reconhecendo a Maria que eu conheço. Deus nunca dá uma cruz maior que a gente não possa carregar!
João
Não sei porque retornei, há alguns dias, àquele restaurante. Do Metrô da Cinelândia pela rua Santa Luzia, daí a Presidente Antônio Carlos e defronte o Maison de France, sobre uma farmácia, o mesmo salão simples. Restaurante macrobiótico. Gostei de ver que permanecia aberto, tinha o mesmo aspecto após quase 20 anos. Não sei se nunca pintaram as paredes ou se o fizeram logo depois da minha última visita. O tom verde-claro-encardido era o mesmo da minha lembrança. Caldo de missô e nabo ralado. Não havia outras opções. Ele mantinha sua tradição purista.
A saudade mesmo era outra. No mesmo andar, na porta em frente, funcionava um instituto de estudos metafísicos, “Era de Aquário” ou “Flor do Amanhã”. Porque será que nunca me lembro dos nomes? Lembro bem das palestras sobre alquimia, astrologia (zodiacal e chinesa), telepatia e outros temas.
A coordenadora e principal palestrante era uma das mulheres mais interessanes que conheci. Quarenta anos, um pouco mais, ou pouco menos. Eu não devia ter nem vinte. Apesar da diferença de idade lembro-me do fascínio que ela me causava. Não possuía dotes físicos excepcionais, de estatura mediana não era muito magra ou gorda, o cabelo preto levemente ondulado permanecia preso numa trança ou rabo de cavalo , às vezes lembro-me de uma franja. Seus olhos são minha lembrança mais freqüente, marrons, muito escuros, suas íris pareciam-me feitas de veludo molhado. Talvez ela me hipnotizasse.
Embora me sentisse muito atraído, nunca me declarei. Acreditava na época que dentre seus alunos ela me dedicava uma atenção especial, o que me fazia girar aprisionado na sua órbita gravitacional. Conheci depois mulheres com esta habilidade, fazem-no crer que é especial ou desejado, mas nunca se entregam ou permitem a aproximação. Não parecem desejar um fim específico como namorar, obter vantagens profissionais, casar ou outra coisa qualquer, apenas gostam de ser adoradas.
Lembro de uma tarde especial. Havíamos participado de uma discussão sobre os arcanos maiores do Tarot, éramos poucos, como de costume e foram saindo até sobrarmos apenas ela e eu. Eu já tinha desistido de resistir ha muito tempo e me entregava aos seus encantos sem esperar nada em troca. Perguntei se ela podia prever o futuro.
Contou-me de Prometeu, semideus grego que enganara Zeus e roubara do Olimpo o fogo (nous) para dá-lo aos homens. O castigo de Prometeu fora ser acorrentado ao monte Cáucaso e ter seu fígado devorado eternamente. Prometeu significa, em grego, aquele que vê antes. Seu irmão chamava-se Epimeteu, o que vê depois.
Zeus, insatisfeito apenas com o castigo de Prometeu, planeja a vingança contra os homens. Chama Juno e pede que prepare uma donzela muito especial. Cada deus do Olimpo lhe ofertará seu melhor atributo, recebe beleza e inteligência, a habilidade de tecer e cantar. À esta moça tão prendada dão o nome de Pandora (que possui todos os dons). Pandora é presenteada à Epimeteu, ela trás consigo uma caixa e a recomendação de Zeus de que nunca deverá ser aberta.
O tempo passa e Epimeteu desfruta das delícias de Pandora, é inevitável que um dia sua atenção se volte para o dote de sua noiva. Tendo vindo de Zeus e pelas mãos de Pandora imagina as maravilhas ali escondidas. Abre-a. O dia claro vira noite, tantos são os males que saem da caixa, a dor, a doença, a miséria. Epimeteu sofre dores violentas pela proximidade de um mal tão grande, num máximo esforço consegue fechar a caixa. Todas as desgraças, vingança de Zeus, já estão soltas no mundo, uma só permanece trancada: a possibilidade de ver o amanhã.
Escutava embevecido e ela prosseguiu -"Graças ao esforço de Epimeteu nem eu nem você saberemos antecipadamente o dia de nossa morte". Não sei se me lembro ou inventei este final, como também não lembro de como comecei a beijá-la. Lembro-me perfeitamente da alegria que senti ao percebe-la úmida.
Os mitos de Prometeu e Pandora falam da separação do homem da natureza, quando deixamos o mundo natural para mergulharmos no mundo da cultura. A palavra grega para fogo é a mesma para conhecimento, o nous de Prometeu se assemelha ao fruto proibido do centro do Jardim do Éden. A serpente contou a verdade, se comêssemos de ambas as frutas, a fruta do conhecimento e da vida eterna nos tornaríamos deuses. Fomos expulsos do paraíso e a serpente condenada a rastejar. Pagamos um alto preço por esse discernimento que usamos tão pouco.
A porta ao lado do restaurante é hoje uma oficina protética. Afastei-me gradualmente daquela que me enfeitiçava. Encontrei alguém que cuidava mais do meu corpo e menos do espírito, algo importantíssimo aos 20 anos. As visitas foram se tornando infreqüentes até se acabarem. Na faculdade ou logo depois tornei-me um cético. Guardo um pouco de seu feitiço e agradeço o quanto me despertou a curiosidade. Hoje descendo a rua de volta à Cinelândia agradeci a ela e a Epimeteu, posso caminhar sem saber o que me acontecerá amanhã.
quarta-feira, 7 de abril de 2010
Replicando...
terça-feira, 30 de março de 2010
sexta-feira, 19 de março de 2010
Personagens - Ruy
Filho da Iudete. Maria irá apaixonar-se por ele. É um companheiro improvável para ela, é culto de outra classe social e a princípio não reconhece os encantos físicos de Maria. Torna-se afetuoso com ela por educação e por influência da mãe.
Outros personagens verão os sintomas de paixão em Maria e atribuirão erroneamente a si mesmo - como pode ser o caso do João ou Tavares - ou exporão seus preconceitos julgando-a apaixonada pelo porteiro ou entregador da farmácia. Algumas coincidências podem corroborar esses mal entendidos.
Será uma paixão platônica?
Outros personagens verão os sintomas de paixão em Maria e atribuirão erroneamente a si mesmo - como pode ser o caso do João ou Tavares - ou exporão seus preconceitos julgando-a apaixonada pelo porteiro ou entregador da farmácia. Algumas coincidências podem corroborar esses mal entendidos.
Será uma paixão platônica?
Personagens - D. Iudete
Vizinha do casal, em algum momento conhecerá Maria e decidirá alfabetizá-la. D. Iudete diz que seu nome é um destino, foram precisos dois analfabetos para que Hildete virasse Iudete, seu pai e o tabelião. Professora aposentada, aluna do Instituto de Educação, é orgulhosa dos seus feitos, acredita que a educação é um caminho para melhorar as pessoas.
O convívio de Maria com Iudete pode pautar o amadurecimento intelectual de Maria.
A casa de Iudete pode permitir a exposição de Maria a eventos fora da dinâmica da casa onde trabalha.
O convívio de Maria com Iudete pode pautar o amadurecimento intelectual de Maria.
A casa de Iudete pode permitir a exposição de Maria a eventos fora da dinâmica da casa onde trabalha.
Personagens - Nossa Senhora, Menino Jesus e São Judas (Xangô)
As religiões primitivas acreditavam que os deuses participavam muito mais ativamente da vida na Terra. Na guerra de Tróia é a vontade divina que decide os rumos da guerra. Maria conversa com os deusas da sua crença. São como amigos imaginários para atenuar a solidão da vida na casa.
Ela transforma o catolicismo aprendido na infância numa religião própria onde Maria é sua irmã mais velha, escuta-a, dá bons conselhos e é sempre sua partidária.
Jesus assemelhasse em seu papel ao superego, vai lembrá-la dos seus deveres, princípios e sugerir que siga mais o senso comum e a ordem estabelecida do que os próprios desejos.
São Judas Tadeu, padroeiro das causas desesperadas e por isso Santo de fé da pobre famíla da Maria, como personagem aconselha-a de um ponto de vista masculino, um irmão mais velho ou um amigo gay, que pode oferecer um ponto de vista masculino mas isento de tensão sexual.
Xangô pode ser sincretizado com São Judas Tadeu. Seu símbolo é o machado de duas faces, significando que o machado tanto protege seus filhos das injustiças como os pune quando as cometem.
Esse sincretismo permitirá que São Judas fake de um ponto de vista mais distante de Maria e de Jesus. Se Jesus é o superego, S. Judas poderá ser a voz das suas pulsões.
Xangô pode ser sincretizado com São Judas Tadeu. Seu símbolo é o machado de duas faces, significando que o machado tanto protege seus filhos das injustiças como os pune quando as cometem.
Esse sincretismo permitirá que São Judas fake de um ponto de vista mais distante de Maria e de Jesus. Se Jesus é o superego, S. Judas poderá ser a voz das suas pulsões.
Personagens - Tavares, amigo do casal
Pode servir como dois personagens distintos. Para o marido é um calhorda sexista que estimula o seu pior lado. Para mulher é um homem gentil e culto que apoia com citações e referencias cultas cada decisão ou sugestão que ela dá.
Personagens - Maria, a empregada
Tem dezoito ou 20 anos. Tem a beleza da juventude, mas foi criada numa fazenda em Cardoso Moreira.
Desconhece a realidade urbana moderna. Vem trabalhar na cidade pela necessidade material de sustentar-se, na fazenda em decadência não resta mais trabalho que a remunere.
Ela amadurece com a saída de casa. Cresce intelectual e espiritualmente.
Descobre o amor e o sexo. É religiosa.
A ação da Virgem Maria, do Menino Jesus e são Judas é contínua na sua vida. Como os deuses e deusas da Ilíada, os santos cristãos aqui participam ativamente da vida de Maria - numa fase inicial o pensamento de Maria é traduzido pelos diálogos (imaginários?) dela com seus guardiães. Gradativamente, a medidad eque sua personalidade se fortaleça, poderia haver uma unificação do pensamento. Uma das questões possíveis é a da Imanência X Transcendência, outra é do sincretismo. Será que São Judas Tadeu não seria Xangô. O seu ponto de vista prático e liberal uma manifestação da contaminação do catolicismo de Maria por outras religiões. Esse sincretismo permite uma Maria mais plural, talvez até mesmo ambígua.
Desconhece a realidade urbana moderna. Vem trabalhar na cidade pela necessidade material de sustentar-se, na fazenda em decadência não resta mais trabalho que a remunere.
Ela amadurece com a saída de casa. Cresce intelectual e espiritualmente.
Descobre o amor e o sexo. É religiosa.
A ação da Virgem Maria, do Menino Jesus e são Judas é contínua na sua vida. Como os deuses e deusas da Ilíada, os santos cristãos aqui participam ativamente da vida de Maria - numa fase inicial o pensamento de Maria é traduzido pelos diálogos (imaginários?) dela com seus guardiães. Gradativamente, a medidad eque sua personalidade se fortaleça, poderia haver uma unificação do pensamento. Uma das questões possíveis é a da Imanência X Transcendência, outra é do sincretismo. Será que São Judas Tadeu não seria Xangô. O seu ponto de vista prático e liberal uma manifestação da contaminação do catolicismo de Maria por outras religiões. Esse sincretismo permite uma Maria mais plural, talvez até mesmo ambígua.
Personagens - A mulher Ana
Advogada, bem sucedida, passa dos 30. É desbocada, pontuando suas frases com palavrões. Ela tem necessidade de organizar a vida. Decidiu que está na hora de ter um filho. Ainda não contou para o marido. A contratação de uma empregada faz parte do plano de preparação do ninho.
Personagens - O marido João
Arquiteto em crise dos 40 anos. Apesar de voyer é pouco malicioso. É culto, mas apesar da analise intelectual chia de referências - mais para um curiso do que para um erudito - e entende a realidade de acordo com suas fantasias. Parece distante da realidade próxima, habitando um mundo pessoal dentro da sua cabeça.
É fato que ele deseja Maria, mas será que terá mesmo um caso com ela ou apenas imagina?
Tem um escritório em casa, por isso passa muito tempo na própria casa. A empregada é uma perturbação da sua rotina no começo, mas começa a chamar a sua atenção ao longo dos meses.
É fato que ele deseja Maria, mas será que terá mesmo um caso com ela ou apenas imagina?
Tem um escritório em casa, por isso passa muito tempo na própria casa. A empregada é uma perturbação da sua rotina no começo, mas começa a chamar a sua atenção ao longo dos meses.
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